Queria ter resolvido as coisas com a Samira. A vida, a casa: algum plano que fosse. Qualquer uma das desavenças. Mas hoje, bastaria resolver o lugar.
“Onde você está?", eu havia perguntado. Dez anos. Não fosse pelo Whatsapp, não sei como iria encontrá-la. Mesmo após tantos e-mails noturnos, com atrasos forçados e pausas fingidas nas respostas, o máximo que chegamos a um acordo, ao menos quanto ao ponto de nosso reencontro, foi que seria no Centro. Eu não gostava de sacar meu celular na cidade, especialmente em momentos assim, em que mal conseguia prestar atenção nas notificações, ladras de nosso sossego. Tirar do silencioso, mal necessário, foi um inferno: todos, justo agora, lembraram de mim. A Vivo, minha mãe, meu chefe. Minha esposa…
“vai almoça onde hj”, perguntou, sem carinhas. “Não sei”, respondi. Em outro momento, ficaria ansioso; mas toda minha preocupação já estava ocupada pela espera por Samira. “E você?”, respondi, pra devolver a bola, tocar o papo, não levantar mais suspeitas. Samira, com foto de girassol, permanecia calada em sua conversa.
Suspeitas de que, afinal? Não éramos mais nada, Samira e eu: em priscas eras, no tempo da copa das vuvuzelas, ainda, fomos um casal. Fomos um casal… a constatação me entristecia, como se olhasse para o coto de um braço. Os planos de amor eterno, as kitnets que visitamos, as viagens que namoramos e não fizemos: tudo que não aconteceu. E dez anos se passaram.
Os ladrilhos soltos das calçadas, as senhoras cansadas com sacolas pesadas, o medo de pisar fora da guia e ser atropelado: eu precisava achar um canto para esperar por ela. É engraçado lembrar disso agora, mas passamos pouco tempo aqui, no Centro, de dia. Nunca zanzamos pelas ruas estreitas, desbravando o comércio, aguentando o sol do interior. Nossa vida eram as noites no Filosofia, as aulas matadas na Praça do Fórum, os beijos trocados no Bar do Billy.
Mesmo as mensagens, parecidas na ideia com as dos aplicativos de agora, não poderiam ser mais diferentes: em cada conversa, faltava o amor. O Whatsapp, cruel e onipresente, encavalava cobranças, pedidos, e papos furados. Me pergunto se em algum lugar, algum rincão perdido da internet, havia algum vestígio de nós. As redes obsoletas, mortas, os torpedos perdidos. Mas não era momento pra pensar em nada disso. Talvez fosse um bom assunto pro reencontro, se apenas eu soubesse articular. Melhor que o término, com certeza. Dez anos.
Cheguei na Praça da Matriz. Em cada cidade, há uma igual. No meu tempo – no nosso tempo – estaria morta na noite das aulas, com esparsos andarilhos e skatistas. Olhar ao redor não adiantaria. Ou adiantaria? Por mais que visse mulheres como ela em todo o canto, já não lembrava mais de Samira em automático: o cabelo crespo, a pele negra clara, e os nossos espaços e cantos do mundo deixaram de ser privilégio dela. Existia um mundo, de frustrações e desilusões, que não envolviam mais ela. E no entanto, eu estava ali.
– Onde você está? – perguntei de novo, desta vez, por áudio. Para minha surpresa, Samira, com foto de girassol, começou a gravar uma mensagem. Guardei o celular no bolso, respirei fundo, e esperei vibrar. O sol ardia minha testa; não fosse a vergonha de esconder a careca, traria um boné.
– Oi, Bernardo – ela disse, como sempre. O mesmo tom, voz rouca, cadência lenta: como pude esquecer seu som? – Fica tranquilo; estou chegando. Tô de verde – disse Samira, imitando o jeito que eu falo os erres, puxado: ela sabia que isso me irrita.
Mandei carinhas, sorridentes na medida, e procurei por mulheres de verde. Como ela estaria agora? Certamente não era um girassol, ainda que, conhecendo ela, adoraria ser um. Procurei, de costas encostadas na parede das Lojas Cem, que pegou fogo há uns anos; e nada dela. E meu celular tremeu.
“e com qm vc vai almocar”. Era minha esposa. Respirei, e respondi. “Você sabe. Eu te contei, lembra?” menti. Ela respondeu com uma carinha irritada. “vai la”.
Encarei a tela do celular, pensando em respostas. Por que aceitei rever a Samira? Uma ex-namorada de dez anos atrás? O que eu tinha na cabeça? O que estava procurando?
– Oi, Bernardo – Uma voz rouca, de cadência lenta, me falou. Tirei os olhos da tela. Era Samira, dez anos depois.
– Oi, Samira.
– Você fala do mesmo jeito. – Ela me encarou. Senti vergonha de pensar em como eu estava: mais velho, gordo, fraco. Mais calvo, pra piorar. Com certeza, mais cansado: será que ela iria me achar abatido demais? Desviei o olhar, e sorri.
– Você está ótima – eu disse, sem pensar. Apesar das diferenças, das primeiras rugas, do rosto mais inchado, ou talvez por causa delas, estava mesmo: havia uma energia em seus olhos, um propósito em sua pose, e… apesar disso tudo, eu não sentia amor.
Eu não sentia nada.
Samira abriu os braços pra mim. – Dá um abraço, Berne. Dez anos!
Eu a abracei. Apesar do sol forte, seus braços estavam frios; seu colo parecia espetar meu peito. E eu não sentia nada. Ela descansou sua cabeça, quente e suada, em meu ombro. Por minha vez, dei tapinhas em suas costas. E nos afastamos.
– O que você tem pra me contar? Depois de tanto tempo…
Pensava em algo. Do que falar? Dos planos que não deram certo? Do livro que nunca lancei, do mestrado que não cursarei, do que nós dois fomos, deixamos de ser, e jamais seremos? Ou, pior ainda: dos planos que deram certo? E meu celular vibrou. Tirei-o do bolso. Era minha esposa. Sorri, sem graça, e mostrei o celular pra Samira.
– Nada de mais. Deixa eu só responder pra Rebeca aqui. – Comecei a gravar um áudio. – Oi, amor. Já estou aqui com a Samira. Amo você. – Guardei o celular no bolso, e forcei um sorriso. – Pronto. Agora podemos conversar.