Meu Cantinho Sertanejo 2000

Pensando em nada

— No que você está pensando?

Em nada, pra falar a verdade. O que eu mais gostava dos momentos juntos era esvaziar a cabeça. Curtir o colo, olhar seus olhos castanhos, e esquecer dos problemas. Respondi com um sorriso:

— Em nada. E você?

— Em como seria. Saber o que o outro está pensando...

Sorri, sem graça, e soprei seu punho num beijo de lábios fechados. Que invasão seria! Não ter privacidade nos próprios pensamentos…

— Nossa! Desculpe. Só estava curiosa — respondeu.

— Oi? Não falei nada! — Estava surpreso. Por mais defensiva e frágil que fosse, e pedisse desculpas toda hora, eu não imaginaria que…

— Você me acha frágil, é? Defensiva? Poxa…

— Mas eu não disse nada!

Olhei em seus olhos, chorosos, e, para minha surpresa, sem que seus lábios se mexessem, a ouvi dizer como a chateava com meus comentários, com a ousadia de dizê-los na frente dela, e como meus lábios também não estavam se mexendo, e… “Você leu meu pensamento!”, dissemos, juntos. Ou será que pensamos? Olhamos olho no olho, tentando interpretar o turbilhão de informações que nos era apresentado. Cada pensamento, ideia, sensação. Senti vozes e frases sobre coceiras, vergonha, sobre a situação. Espanto e medo e excitação e dor no joelho e “isso é coisa de filme”. “Será que isso é uma brincadeira” e “Isto não tem como ser brincadeira”. Tive a sacada de pensar em algo distinto, bizarro: uma fruta.

— Melão — ela disse.

“Como você sabia?”, perguntei, em minha mente, e ela, com voz, falou — Sabendo.

Por reflexo, abracei-a. Ela retribuiu, com força. Forcei o riso, e constatei, não por empatia ou costume, mas por esse novo poder, que seu riso foi de nervoso também.

Este foi o primeiro dia.

Fiz testes. Olhava nos olhos dos vira-latas, de estranhos, do cobrador do ônibus. Fechava os olhos, respirava fundo, estendia as mãos, visualizava-me lendo os pensamentos das pessoas. Nada feito. Todos me achavam maluco — ou era o que eu imaginava, e só imaginava. Ler o pensamento mesmo, só o dela. Olhar no olho facilitava: mirar na menina de seus olhos, e querer escutar.

Captava seus pensamentos como uma transmissão. Recebia palavras, sons, frases, texto, de uma maneira que não envolvia meus ouvidos e nem meus olhos, mas algo além.

Depois, veio a insegurança. Perguntas óbvias, difíceis, que não devem ser perguntadas, lidas fundo na cabeça, com resposta imediata. Homens que teve, se era fiel, se o amor era real. Para minha surpresa, não havia chifres, o amor era puro, e o passado era passado, o seu e o meu. Nisto nos entendemos.

Completávamos frases, adivinhávamos ideias. Ficar em seus braços no silêncio já não era mais tão silencioso assim. Cada pensamento meu passava por sua cabeça. Opiniões, medos, a escalação do penta. Lia sua resposta na hora, sem precisar escutar, ou ela precisar falar. Também, seu julgamento. “Bobeira”, “risível”, “estranho”. Seguir o fluxo era complicado. As estruturas nem sempre eram claras, e raramente eram óbvias. Incomodava após certo ponto, eu me sentia nu, e… “Paro, se você quiser”, ela pensou. “Quero que você pare”, eu pensei, e só pensei. “Eu pararia, se pudesse!”, ela respondeu, pensando, e pensei que “Queria que você pudesse parar”, “Queria poder conseguir parar!”, e “Queria querer poder conseguir poder parar”, “Queria poder querer conseguir poder parar de poder querer” e, e, e…

Caí do sofá, a cabeça pulsando, boca seca: não consegui pegar seu pensamento. O que estaria acontecendo?

Com o tempo, identificamos a causa: Eu lia seu pensamento, e ela me lia lendo seu pensamento, e eu lia a leitura dela de meu pensamento, e tal ciclo de leituras de leituras das leituras era o suficiente para nos levar ao nocaute. Davam ressaca, letargia, enxaqueca. Atrapalhavam todo meu serviço. Um colega notou meu estado, e me entregou um manualzinho de meditação. Folheava nos intervalos. Era um alívio não pensar em nada, e mais do que isso, não ter pensamentos alheios na cabeça. Mas sentia cansaço, desconfiança, até ciúmes: na cabeça dela, mais que na minha.

Precisava fazer algo. Em casa, pus as lições em prática. Pensei num mantra, esvaziei minha mente, deixei meu corpo e meu costume fazer todos os movimentos. É algo difícil, requer anos de prática, mas constatei resultados logo que ela chegou. Cansada e estressada, tentou me ler — Por que é que sua cabeça está vazia? Escondendo algo? — disse ela, berrando com a garganta, gritando em pensamento. Pensei na palavra “nada”, o mais próximo de não pensar em nada que imaginei. Ela começou a pensar pensamentos altos, estalados, que não pude deixar de escutar. Além dos cognatos “ridiculous”, “stupid”, que só reconheci por estarem como escrita também, entendi lhufas. Ela estava pensando em inglês!

Minha calma acabou. “Você está pensando em inglês só pra eu não entender!”, pensei, e disse também. “That’s right”, entendi, graças a tradução mental simultânea. “Isso mesmo!”

Ela ofendeu em todos os idiomas que sabia, xingou minha altura, físico, e coisas que não devo dizer. Sinto dizer que pensei mal dela também. Estava furioso; para não piorar tudo, coloquei minhas mãos atrás das costas, igual futebolista. As dela, ela pôs em meu pescoço. Olhei em seus olhos, e ela olhou nos meus. “Cretino, idiota, te odeio”, “você não me respeita”, “você é quem não me respeita!”, “você não me dá espaço nem de pensar”, “você é quem não me dá espaço para ter espaço de pensar”, “você é quem não me dá espaço de não ter espaço de precisar de espaço para não ter que pensar em pensar em pensar em pensar…”

Acordei no chão, sentindo a cabeça pulsando, nuca arranhada, e uma culpa descomunal. Ela estava debruçada no sofá: não consegui ler pensamento algum. O que estaria acontecendo? Suava frio. Virei-a de barriga pra cima. — Olá — ela grunhiu, esfregando a testa, molhando os lábios.

— No que você está pensando? — perguntei.

— Em nada — ela disse. Olhou fundo nos meus olhos. Pensei em frutas, palavrões, na escalação do penta. Ela sorriu. — E você?