Praças, calçadas e ônibus; ruas, igrejas, mercados. Todo lugar, infelizmente, trazia a perspectiva de mais um encontro. Coisas do interior: só quem vive lá sabe. E, como num filme de faroeste, a cidade era pequena demais para as duas: Dona Laura e Dona Soraya.
Ambas se conheciam de vista, e de longa data. Antes de serem chamadas de Dona, de serem mães, e, no caso de Laura, avó de dois netos e uma neta, foram colegas. De colégio, mas não de turma. De bairro, mas não de quadra. De serviço público, na prefeitura, mas nem de setor ou profissão. E, apesar da falta de convívio, de alguma briga, desavença, dívida ou traição, ou qualquer motivo real para causar tanto desgosto, se as duas se vissem por aí, era certeza: saía faísca. Fechavam a cara, desviavam os olhos: guardavam os bom-dias para quem melhor merecesse.
"Ela não vai com minha cara", dizia Dona Soraya, sempre em voz baixa. "Meu santo não cruza com o dela", dizia Dona Laura, a quem lhe ouvisse.
E seguiam assim, dia após dia, trocando calçadas, alternando corredores no supermercado, evitando olhares na Praça da Matriz. Apesar de não se encararem, e certamente não se falarem, sabiam de tudo uma da outra; pelo menos, na medida em que, numa mesma cidade, sabe-se de tudo de todo mundo. Os afazeres de seus filhos, as bebedeiras de seus maridos, as saúdes de seus pais, idosos e veneráveis. A política local, e como isto afetava a prefeitura. O terreno comprado por Laura no Jardim Boavista; o apartamento que Soraya herdou do pai em Ubatuba. As excursões de ônibus, sempre separadas, e as viagens da CVC, para destinos diferentes. Seus universos, quase juntos, mas só por mal compartilhado.
Conheciam tudo uma da outra, menos os seus gostos, seus hobbies além das caminhadas, e nem correta sequer seus desgostos, além da suspeita de que não se bicavam. Se reconheciam de longe, e quase sempre a tempo de se esquivar e recalcular rotas. Viam as posturas más, o passo cansado e acelerado, o moletom rosa de Laura, a mania de echarpe que Soraya tem. Mas, além de críticas pontuais - "Ela não tinge direito o cabelo", pensava Laura, "Ela devia ir num dermato olhar a pinta", diria Soraya- não saberiam descrever uma à outra.
E assim viviam, com a paz dos problemas do dia-a-dia, na tranquilidade dos desafios de sempre. Havia muito o que se fazer, feiras, missas e clubes para se frequentar. Uma vida para se viver, e certas pessoas para se evitar. Até que, para todo mundo, tudo mudou. Veio a pandemia, a contragosto de todos nós. E também de Dona Laura e Dona Soraya. A primeira achava graça dos preocupados. "Isso está lá na Itália. Vocês veem muita TV". Soraya, por sua vez, trouxe uma caixa de máscaras para as colegas de setor. "No Japão é costume usar".
Não demorou muito para as notícias ruins, as reais e as fictícias, começarem a chegar na cidade. Os adoecimentos de conhecidos, primos distantes de vizinhos de amigos. Os primeiros falecimentos, ainda de completos desconhecidos. Imensas conspirações, que para alguns, eram mais assustadoras do que a realidade: mas não nos cabe aqui reproduzir. E então, a internação do prefeito, com os pulmões comprometidos, em um hospital da capital.
Dona Laura e Dona Soraya, assim sendo, tiveram que ficar em casa. Cada uma na sua, é claro. Não por expertise virológico, por crença bem-informada na ciência, ou por protesto. Ordens do vice- prefeito: para os setores administrativos, instituiu-se o trabalho remoto. Os expedientes, sejam os tranquilos ou os corridos, os banais ou os que rendiam causos, seriam realizados de casa. Saíam os relógios de ponto, as pausas para beber água, tomar café, jogar conversa fora, e, no caso de Soraya, escapulir para fumar seu cigarro. Em seus lugares, entraram telas e mais telas.
Os computadores, antes janelas para o mundo, tornaram-se o mundo inteiro. A salinha da bagunça, onde Soraya praticava teclado, perdeu-se para o notebook, que, conforme seu termo de empréstimo, estaria ligado "à disposição". O quarto de visitas, onde Laura preferiria acomodar os netos, foi feito de escritório. O trabalho, ou a tentativa de vigilância dos chefes, lhes tomou até os celulares. Nas poucas horas que restavam, entre as demandas do serviço e da casa, mal sobrava tempo para si. Consolar os filhos, vigiar amigas, decidir entre fugir das notícias ou se entregar a elas: tudo cansativo demais.
Os filmes ficaram chatos, os livros não eram lidos, o teclado de Soraya ficou mudo. Cada saída, difícil e contada, era uma busca por um vislumbre do mundo. Idas ao supermercado, sempre cedo, conforme o horário preferencial. Um ritual tomado por pressa, higiene, e medos: os preços subiam, os produtos faltavam. O fedor do álcool e a temperatura medida no pulso lembrava: o vírus também estava ali. E em meio a isso, procuravam pessoas conhecidas. Rostos familiares sob as máscaras, em tempo de tantas notícias ruins.
No caminho de volta, admiravam em seus mundos qualquer detalhe interessante, que só elas enxergariam. Histórias para contar para o futuro, se houvesse. Monitoravam mudanças, se confortavam com as semelhanças. Tudo para aliviar o coração, e poder focar no que está ao alcance dos olhos. Era um alívio ver ex-colegas de escola, filhos e netos de amigas. Até mesmo os bêbados famosos. Os comerciantes fugindo dos fiscais, dançando o limbo sob portas de ferro, saltando fitas e correntes de suas lojas. Quanto a quem não se via na rua, era melhor pensar que estariam em suas casas, cumprindo o subversivo dever de se preservar, esperando vacinas, remédios, milagres. No caminho de volta, nem Laura e nem Soraya ousavam passar na frente do Velório Municipal.
E um ano, o mais difícil de suas vidas, passou. O relativo conforto, o de trabalhar de casa, não ter seu ganha-pão em risco imediato, não apagaria os traumas, o estresse: não traria de volta o pai nem o sobrinho de Laura, e não diminuía a dor pelos amigos que Soraya perdeu. É impossível, pra quem mantém alguma humanidade, não sentir medo, tristeza, horror e revolta.
Mas, apesar do trabalho contra, chegou o dia em que se vacinariam.
Laura procurava rostos familiares. Olhava o mais longe que podia, se perguntava se algum dos outros carros na fila do drive-thru seria de algum conhecido: alguma amizade do colégio, algum colega da prefeitura, alguém que parou de dar notícias por simples descuido, e não por algum fim pior.
Soraya esperava na fila do postinho de saúde. Os meses de isolamento e telas não lhe deixaram esquecer como falar com estranhos. As máscaras e a distância atrapalhavam, mas não a impediam. Reclamava de banalidades, da espera, do vento, não por indignação, mas como ponto em comum. Falava de coisas boas, da vacina, da esperança, da perspectiva do fim das saudades, pra aplacar os sentimentos negativos. Mas ficava a sensação de que faltava alguma coisa.
Após a segunda dose, e seus devidos prazos, já não havia argumentos que vencessem o tédio. Os boatos de retorno ao expediente presencial para o pessoal administrativo iam e voltavam. Era o que o prefeito que Deus o tenha - gostaria que acontecesse. Era preciso, apesar de tudo, voltar a viver. Mas o que fazer?
Dona Laura decidiu caminhar, como antes: e mais do que isso, iria ensaiar uns piques, tentar um trote, começar a correr. Dona Soraya quis sair sem rumo: sem dar satisfações, dar margens para o medo, seja o da filha ou o próprio. Queriam ver o sol naquele dia frio. Laura vestiu seu moletom rosa, parceiro de caminhadas. Soraya, pra evitar o vento, vestiu sua echarpe.
A Praça da Matriz estava vazia naquela manhã. Vazia, se não por duas pessoas, cada uma em um ponto do calçamento. Andaram, uma em direção a outra. Dona Laura não desviou o olhar; Dona Soraya não contornou os passos. Ao cruzarem seus caminhos, se cumprimentaram. "Bom dia", disse Laura. "Bom dia", respondeu Soraya. E seguiram seu caminho. Para alívio de ambas, as máscaras escondiam seus sorrisos.