Quem ama menos, dita as regras. Foi assim que controlei minha mãe. Mas como filho que ama mais, apesar de tudo, calhou-me a tarefa de organizar suas coisas após sua morte. Documentos, objetos pessoais, e procurar recordações.
Estranho voltar à casa dela: um dia, foi nosso lar. Noto a pintura nova em demãos irregulares, cinza, gelo, amarelo claro: “cores que não sujam”, diria minha mãe.
A sala está impecável, como os lugares vazios de vida tendem a ser. Pinturas feias, placas em inglês, velas jamais acesas, revistas do tempo do Pan. Nossas fotos. Mas da porta da copa pra trás, por todas as partes, a casa está cheia de lixo.
No chão, nas superfícies. Contas, jornais e documentos, papeis amassados. Sacolas rasgadas aos pés dos móveis. Embalagens de papel higiênico abertas, com um rolo retirado apenas. Sacos com roupas mofadas. A pia da cozinha, cheia de líquido fétido e escuro, coberta com cascas de frutas. O fedor me arde as narinas. Não tenho coragem de abrir a geladeira -- como começaria a limpeza? Chamaria uma caçamba? Meu ouvido zune. Não consigo pensar.
Ela sempre foi acumuladora, especialmente depois do cretino do meu pai sumir. Como filho, tive que tolerar: acreditar que em cada lixo, havia uma lógica. Qualquer objeto poderia ser um tesouro: custaria dinheiro, se novo, se limpo. Mas, para tantas tralhas, me falta a capacidade: não consigo ver justificativas. Apenas lixo.
Seu quarto está como sempre. Desavisados pensariam que houve um assalto: gavetas reviradas, armários de portas abertas. Mal há onde pisar. Na cama, erguida com tijolos, pacotes vazios de doces, duas Bíblias, três óculos de leitura. Reviro as Bíblias: só acho notas fiscais marcando páginas. Fecho as pernas dos óculos: guardarei um par.
Decido ver meu antigo quarto. Volto e abro as janelas: ela detestava correntes de vento. Mas preciso respirar, lutar contra os cheiros. Não consigo pensar, e meu ouvido zune. Forço a janela da cozinha, o basculante do banheiro. Ignoro o cesto de lixo lotado: foco no ar.
O quarto está trancado. A chave no molho é a mesma de quando eu era jovem. Respiro, apesar do fedor, e entro. Mais lixo. Piso nos papeis, e abro a janela. Minha cama coberta de sacos, embalagens, plástico. Meu ouvido zune. Sento na cama, sem espalhar o lixo. Estou cansado. Junto a outro óculos de leitura, mais uma Bíblia. Almeida Revista e Corrigida, letra extragigante. Eu quem dei. Cheia de papéis: uma foto 3x4, da minha infância. Nas margens, anotações. Horários das leituras, e algum comentário. 12h10, 0h35, 4h40. Louvores, frases motivacionais. Reclamações, “sinto medo”, “Jesus, tira minha angústia”, “cura a minha pele”. E, em um profeta menor, uma súplica:
“Senhor, tira o zunido do meu ouvido”.
Meu ouvido não para de zunir. Não consigo pensar.