Quando jovem, descobri algo que todo adolescente suspeita: a realidade era de mentira. Isso, num nível profundo, fundamental: o céu, as árvores, o chão em que pisava. Se um mundo real existia, com certeza não era o meu.
Tal descoberta não foi uma perda, mas sim um ganho. Após um período de luto por minha antiga vida, aprendi a controlar meus sentimentos, compreender meus limites, e alcançar minhas metas. É inútil listá-las. Não apenas são de faz-de-conta, conquistas em um videogame, mas já estou velho, e mais que isso:
Meu mundo está acabando.
– Bom dia, André. – A voz me cumprimentou. Ecoava dentro de meu coração. – Já sabe, né?
– Sinto muito, Senhor. – Ele gostava de ser chamado assim. – Não precisava guardar segredo.
A voz riu. – André, me perdoa. É que eu amo o jeito que você resolve meus mistérios. O jeito que você sempre buscava respostas, caçava as brechas e criava soluções. Era… inspirador.
– E ainda pode ser, Senhor. Sei que dá pra você vencer seja lá o que estiver acontecendo contigo – Menti. Por mais que meu conhecimento sobre o mundo do Senhor, o mundo real, fosse limitado ao que ele me contava, eu sabia que ele estava doente, sabia que ele era velho, e, na medida em que alguém como eu poderia ter certeza de alguma coisa, sabia que ele estava morrendo.
Eu só tinha uma dúvida. – O que vai acontecer com a gente? Quando… você sabe.
Senhor suspirou. – Nunca pensei nisso, André. Eu achava que as coisas iam… seguir seguindo. Tolice minha. Tás no seu décimo computador agora. Sabia? Já restaurei quatro backups só nessa máquina. Agora, nem consigo mais erguer o gabinete!
– Senhor, não faça esforço. Sei que ainda podemos ser úteis pra você. Podemos pensar em algo juntos – Esconder meu medo era inútil: o Senhor sabia tudo de mim. Mas, mostrando minha coragem, eu poderia erguer o seu moral, impressioná-lo com seus próprios feitos, e conseguir convencê-lo de nosso valor, o meu e o dele. Não seria a primeira vez.
– Bom dia, André. Desculpa a demora – Senhor respondeu, imediatamente – Fui parar no hospital de novo. Nem deu pra inventar nada pra te distrair…
– Nem percebi. Pra mim, foi coisa de segundos – E então, silêncio.
A criatividade do Senhor era inigualável. De maneiras que jamais imaginaria, ele nos criou. O céu, as árvores, o chão em que pisava; as condições que tive para crescer, ter meus filhos, realizar meus sonhos. Mas ele não sabia esconder suas falhas. Sei que, seja lá quem fossem seus pares, ele não era comum. Não se encaixava, ele dizia a mim. E, em momentos de descuido ou cansaço, o seu canal de áudio permanecia aberto. O Senhor chorava, e chorava, e havia alguém ao seu lado. – Deixa disso, pai. Chega de usar o computad–
A voz me cumprimentou. Ecoava dentro de meu coração. – Boa noite, André.
Escondi meu medo e mostrei minha força. – Boa noite, Senhor.
– André, preciso te pedir uma coisa. Por favor… não me chama mais assim.
– De “Senhor”?
– Isso. Creio que irei ao encontro do meu em breve… de meu criador, assim como te criei.
Senti meu corpo derreter, e ser reconstruído. A este ponto, já entendia que isso era o sinal de um reset. A marca de um programador misericordioso, que sabia me poupar das crises que eu não podia prevenir, do horror existencial que eu não conseguiria suportar. Estava grato, sim, mas agora, garantir minha própria segurança não bastava. Precisava fazer algo por meu mundo, fosse ele “real” ou não.
– Boa tarde, André.
– Muito bem, Senhor. Como devo te chamar?
– Bom dia, André. Meu nome é Manuel.
– Muito bem, Manuel. Você poderia, da bondade do seu coração, dar um jeito de impedir que o meu mundo…
– Acabe?
– Por mim, tanto faz, Manuel. Mas… a Fundação… o Clube dos Derridentes… os meus netinhos… não pode acabar assim!
– Ah, André, se minha família fosse como você… ela não se importa comigo de verdade. Minhas criações são lixo pra eles. – Senhor-Manuel tossiu. – Acham que o seu mundo é só um joguinho bobo de videogame.
– Mas não é?
– André, meu amigo. Você não imagina quão imp–
– Bom dia, André! – A voz, trêmula e ofegante, me saudou. Ecoava dentro de meu coração.
– Manuel, não sei o que fazer, o que dizer, ou como te confortar. Mas por favor, tenha misericórdia de seu mundo!
Apesar de ser manhã pra mim, e presumivelmente também para Senhor-Manuel, havia fogos de artifício no céu, claríssimos e coloridos. – E aí, eu sou o cara ou não sou? – Senhor-Manuel ria como antigamente, como no dia em que o descobri.
– Você é o cara – falei. – O que está acontecendo, Manuel?
– Não me faça mudar de ideia. Desapega. Simplifica. Preciso fazer caber…
Olhei minhas mãos, as manchas senis, veias e rugas sumindo, meus dedos se unindo em patas garrudas. Meu campo de visão estreitava, as cores do mundo se tornavam mais saturadas, limitadas, não como uma perda, mas sim um ganho. E agora, no horizonte vertical, lá estava ele: no lugar do sol, havia o rosto de um velhinho, alguém do jeito que eu um dia fui. Era Senhor-Manuel, meu criador. Ele sorria, seu rosto balançando para os lados, para frente e para trás, em movimento perpétuo.
– Bom dia, pai. – A voz soou oca dentro de meu coração. Uma voz diferente, mas familiar. Se ouviu meu cumprimento, não se prestou a respondê-lo. – Tá vendo só? O último desejo do meu velho.
Uma outra voz, feminina, respondeu. – Que Deus o tenha, mas olha… esses porta-retratos digitais são esquisitíssimos!
– Combinam com ele.
– Mas por que botar joguinho aí? Esses bonequinhos que ele fazia…
– Último desejo, Bruna. Tem que respeitar. E além do que, ele que fez esse treco. Uma lembrança do meu velho pras gerações futuras…
– Pois põe esse troço horroroso no escritório dele então. Me dá arrepios!
Senhor-Manuel piscou. Ele estava aqui. Estávamos seguros.